imagem: acervo pessoal |
Além de sua extensa cultura e
sabedoria, Rui tinha paixão por idiomas e usualmente carregava um pequeno
dicionário no bolso do paletó. Era bonito de ver. Sua sede por conhecimento só
aumentava minha admiração por este homem que passou a fazer parte de minhas
referências poéticas e de minha vida acadêmica. Mas quis a vida levar o poeta
para outra Pasárgada. Rui nos deixou em março deste ano e não preciso dizer o quanto sua morte ainda me
comove. Aprendi muito com este elegante e gentil senhor.
Neves publicou em vida apenas um livro intitulado Sedimentos da Manhã, editado em 1985. Transcrevo aqui alguns poemas:
messe
no agosto
o vento
soprou forte e frio
tua voz
ficou rude e destemida
do rosto
do homem
na
miséria da rua
fizeste
em
ti
um canto
de revolta
as
veredas da rua te afundam vales
e viram
teu olhar comprometido
tua voz
ecoou na coxilha e na várzea
e fizeste
teu canto
o dos
oprimidos
partiste
em busca de foices
nas
lavouras
e o
trigal balançou espigas maduras
punhos
cerrados vibram no ar e te segue
para
quebrar os elos das correntes
haverá
mais pão e riso na criança
e a paz
fecundará o arrozal na safra
o homem
da terra
com olhar
de outono
sorrirá
contigo
na festa
da colheita.
este dia não
desculpem
se o dia for só este
não me basta
se as calçadas
só me podem conceder
este quadro antigo
semblantes absurdos e famintos
atrás de vitrines coloridas
existe o dia
consumindo as energias dinâmicas da noite
e o queremos sem mordaça
uma conquista para o homem
desaprisionar o dia
quebrar as sinagogas financeiras
rostos desumanos comungam sua adoração
intercâmbio de papéis
jogam com o destino do homem
silenciar esta estranha balbúrdia
institucionalizada
liquidar este verme medonho
que quis deter o tempo com seus coturnos metálicos
libertar os raios do dia
lançar ao fogo as armas de calar o vento
o silêncio só
decretado
não teve
nunca
nossa convivência
mutilaremos a noite
falando de amor aos companheiros
para nós
o tempo é coisa possível
o diálogo que nos une
as épocas vindouras
é descoberto de agitação
e do tumulto
seguiremos cantando a manhã
como a concebemos
prometendo o tempo futuro
com grande ideal
amotinando o vento com
palavras
de ordem ------------------------------------------
fidelidade
na verdade
eu poderia perder a vida
com algo mais sensato
ser prático
preparar o tempo
ordenar as coisas materiais
eu deveria fazer tarefas
dos homens de minha idade
ter vida regrada
não muito simples
aparentando qualquer coisa mais
homem medíocre
sem muitas ideias
manter o rosto calmo
diariamente
o riso fácil
para tirarem bom juízo de mim
deixar as coisas intrincadas para outros
que venham resolver quando o tempo futuro
esquecer que estamos afundando
em comum
no mesmo charco
deixar de lado a amizade sincera
porque é clara
procurar
entre os homens
gente astuta
perspicaz
que não seja gente de confiar
aprender a não confiar no homem
alguém comum e individual
não participar de nada com audácia
sempre uma reserva de segredos
segredo é uma força moral
saber das coisas vagamente
e quando aprofundar
fingir que desconheço
ser assim
é estar de acordo
é seguir uma regra geral
gertrudes
não te preocupes
nunca
com coisas sensíveis
vai ao clube
dá bom dia
ou boa tarde à vizinha
fala do tempo
escuta futebol
não te preocupes
nunca
com coisas sensíveis
deixa que josé siga
levando o passo ligeiro
o gesto tresloucado
pelas vielas da praça
é bom não saber de tantas coisas
nem ter tantos amigos
e discutir
o melhor é como fazem todos
deixar que tudo ocorra
ao redor
depois de emitir uma opinião
que agrade aos princípios
lógicos formais
não
gertrudes
não posso
que pensará josé em noites de pântanos
de sombras
o piano dormido
lizt
rapsódias
guerras
economia
1000 dedos executando a dança do fogo
andarilho
andar de músicas ligeiras
o passo deserto executando angústias
o senso rítmico de meu próprio sonho
Por hoje é só, até a próxima!
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